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sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

A rotina de um torturador no regime militar de 1964



Atual delegacia do Paraíso, na Rua Tutoia, abrigou o terrível centro de torturas DOI/Codi

Luís Alberto Alves


 De manhã o delegado *Márcio sai de casa, beija os filhos, a esposa e deseja que todos tenham ótimo dia. De terno cinza, camisa azul, e gravata estampada, sapatos pretos bem engraxados; entra na garagem e sai com o Opala 69, prata. Decorridos pouco mais de 40 minutos chega ao trabalho, na Rua Tutóia, bairro do Paraíso, região da Paulista, ou Zona Sul, para outros.

 Logo ao entrar tira o paletó, veste outra camisa surrada, pendura uma corrente com um crucifixo enorme no pescoço e enche os dedos de anéis. Fuma o tradicional cigarro Minister, que segundo a propaganda da então TV Excelsior, tem o sabor que satisfaz. Naquele endereço, onde hoje funciona o 36º DP, naquela época era o famigerado DOI/Codi, braço do Exército no trabalho de investigação de crimes cometidos por opositores ao regime.

 Com mais dois investigadores, fortes e truculentos, entra numa cela e retira uma jovem, aparentando 22 anos, branca, bonita, dentes lindos e olhos castanhos claros. “Vagabunda comunista! Agora vai dizer onde estão os outros terroristas. O endereço do aparelho (casa ou apartamento onde opositores do regime se reuniam ou moravam) e quem fornece as armas. Já te aviso para não se lembrar de Deus aqui dentro”, esbraveja o delegado, com o branco dos olhos avermelhando de ódio.
A terrível máquina de choque elétrico "pimentinha"

                                                          Crucifixo
 A presa se refugia no canto da cela, erguendo os dois braços tentando escapar dos dois homens que lhe segura as pernas e os braços e a sai arrastando para fora. “Hoje, você vai dizer tudo”, ameaça o delegado Márcio, batendo o crucifixo na cabeça da jovem. Segundos depois ela já está pendurada no pau de arara.

 “Tragam a “pimentinha” (máquina de onde saem os fios para liberar os choques elétricos) e enfia em todo buraco que existir no corpo dessa vagabunda, piranha, lixo humano”, orienta Márcio. Rapidamente a ordem é cumprida. Quando um pequeno cilindro de metal enrolado com fio é introduzido na vagina da detenta, o sangue começa a jorrar no chão.

 “Dá um nó na língua dela com o fio. Coloca outra ponta dentro da orelha e do nariz. Quero o alicate, porque hoje vou arrancar todas as unhas dessa infeliz”, esbraveja.

 Em questão de segundos o circo de horror começa o triste espetáculo. A manivela da “pimentinha” começa girar e logo libera a primeira carga de choque elétrico. A jovem joga a cabeça para trás e de sua boca começa sair espuma branca. Os glóbulos oculares parecem que vão explodir. O chão fica sujo de fezes e urina misturada com sangue.

                                                            Missa
 Um dos investigadores pega a palmatória e acerta vários golpes nas nádegas, sola dos pés e nos ombros. Tudo acompanhado de xingamentos e socos. “Terrorista de meia tigela. Quero os nomes? Onde fica o aparelho? As armas são fornecidas por quem? Sei que é o pilantra do Fidel Castro e os olhos rasgados da China quem estão por trás disso tudo. Fala! Preciso ir à missa hoje e não posso chegar atrasado”, grita o delegado.
Cadeira de dragão, outro aparelho de tortura

 Durante duas horas a vítima dos torturadores não abre a boca, apenas grita e urra igual cão ferido. Num desvario, um dos torturadores começa se masturbar e joga esperma na boca da jovem, enquanto prossegue a sessão de choques elétricos. Logo as orelhas delas mudam de cor, por causa das constantes faíscas que soltam dos fios. O mesmo ocorre no nariz.

 “Tira esse lixo da minha frente. Essa piranha não vai agüentar calada. Depois da missa, talvez eu passe aqui. Preciso dessa informação hoje”, diz o delegado. Ela é retirada da sala de tortura, cujas paredes estão salpicadas de manchas de sangue e forte mau cheiro de urina e fezes. De volta à cela, é jogada no canto. Começa a vomitar sangue pisado e a tremer. Um dos investigadores chama o delegado e mostra o que acontece. “Traz a palmatória para eu acabar com essa frescura”, grita Márcio. A suspeita leva diversos golpes nas costas, nádegas, palma das mãos e sola dos pés. Tudo acompanhado de gritos e xingamentos.

 A jovem desmaia, mas logo acorda quando dois baldes de água são jogados no seu corpo. Ela passa a tremer de frio e falar palavras desconexas e ranger os dentes, alguns deles quebrados pela violência das pancadas que sofreu no rosto. Agora já meio desfigurado.
                                                          Hóstia
 “Não podemos ter dó de comunistas. Eles não gostam de Deus. São adeptos de Satanás. Imagina esse pessoal tomando o poder aqui no Brasil. Até missa vão proibir. Ninguém terá mais direito de guardar imagem de santo em casa, nem muito menos comemorar o Natal, pois para eles Jesus Cristo nunca existiu”, explica o delegado para os dois investigadores do Dops (extinta Departamento de Ordem Política e Social, que funcionava ao lado da estação Júlio Prestes, hoje sala São Paulo).

 “Doutor, não posso nem sonhar com um negócio desses. Todo domingo eu tomo a hóstia na igreja perto de casa. Ali rezo 20 Salve Rainha e 30 Ave Maria, para me proteger desses animais”, responde o carcereiro, que carrega na lapela da blusa, uma pequena cruz de metal.

 Horas depois o delegado Márcio, acompanhado da esposa e dois filhos pequenos estão na igreja assistindo à missa. Ouve atentamente o sermão do padre, dizendo que Jesus Cristo foi o cordeiro enviado por Deus para retirar o pecado do mundo, quando morreu crucificado na cruz do calvário. Aperta as mãos da esposa, e a beija carinhosamente no rosto. “Você é a mulher mais linda que conheço. Minha vida, meu doce amor”, declara, encostando o rosto junto à cabeça dela.
Prédios que faziam parte do DOI/Codi no bairro do Paraíso, Zona Sul de SP


 Saem após o término do culto no mosteiro de São Bento e vão almoçar no restaurante Guanabara. Ali, as refeições ocorrem em silêncio. Márcio procura sentir profundamente o sabor do molho de tomate que cobre a lasanha, recheada de presunto e queijo. “Lasanha sem molho de tomate, é igual time do Santos faltando o talento de Pelé e Coutinho”, compara.

                                                           Bagunça
 Pede sobremesa de morangos cobertos de chantilly. Procura ser bem carinhoso com os filhos, ambos com oito e dez anos. Passa as mãos na cabeça de ambos. “Vocês terão um Brasil digno. Onde todos andarão em paz nas ruas, sem qualquer tipo de bagunça, principalmente de favelados e bandidos”, profetiza para a esposa e os dois meninos.

 Horas depois está no DOI/Codi, desta vez para interrogar um casal de professores da USP. Ambos são suspeitos do assalto à casa do ex-governador Adhemar de Barros. Não existe nada de concreto, apenas possível ligação. “Coloca os dois fdp de frente para outro”, ordena a quatro torturadores que começa arrancar as roupas dos suspeitos, desferindo socos na barriga, costas e tapas no rosto.

 “É tua mulher essa vagabunda pilantra?, questiona o delegado olhando para o suspeito sentado na cadeira de dragão, com a boca cheia de sal e cheio de fios espalhados pelo corpo. A mulher pendurada no pau de arara leva um chute que a faz dar uma volta na barra de ferro que sustenta o seu corpo. Com a cabeça imobilizada, o alicate de pressão nas mãos de Márcio ajuda a arrancar um dente da boca da professora. O sangue jorra, recheado de gritos de dor.

 “Para roubar e matar inocentes ninguém chora. Isto é só o começo”, ameaçou. Um dos investigadores traz um pequeno e estreito tubo de PVC. Enfia na vagina da suspeita e dentro dele coloca um pequeno ratinho. O animal entra e começa morder o útero da acusada. Ele começa sacudir o corpo, gritar, suspirar e desmaia.
Torturadores usavam cobras nos interrogatórios

                                                           Margarida
 Ao retirar o camundongo coberto de sangue e restos de carne na boca, o delegado pega o bicho pelo rabo e acaricia seus pelos. “Complementa a refeição dele com queijo mussarela. Fez bom trabalho”, disse. Mas a sessão de terror estava no começo. “Traga a Margarida e enrola ela no pescoço desse vagabundo”, diz o delegado a um dos investigadores, que volta com uma cobra jibóia nas mãos.

  O professor se apavora, começa a dizer que não conhece ninguém que participou do assalto à casa de Adhemar de Barros. Não tem militância política, é favor da democracia. “Sem vergonha! Achamos vários livros de comunismo na sua casa, inclusive do safado Karl Marx. Suas aulas na USP são recheadas de críticas ao governo”, esbravejou o delegado.

 A cobra se enrola no pescoço do suspeito e começa apertar até o ar sumir dos pulmões do acusado. Minutos depois do desmaio, ele volta a si após fortes cargas de choques elétricos. Um investigador traz um pé de pato, enche de amoníaco e coloca na sua boca. A tortura é repetida várias vezes, com a vítima sentindo fortes falta de ar, por causa do forte cheiro do produto.

 Com os corpos cobertos de feridas e ossos fraturados, os dois são colocados numa cela escura cujo chão está repleto de baratas e aranhas.  Bem machucados, ambos não conseguem se mexer ou esboçar qualquer reação. Por causa do sangue que sai dos braços e pernas, os insetos começam a subir neles. A poucos metros ouvem os gritos de outras pessoas torturadas, desta vez estudantes apanhando de palmatória e passando pelo terrível corredor polonês, sofrendo todo tipo de agressão.
Camundungos eram introduzidos no ânus e vagina dos suspeitos

                                                         Pijama
 Mais um dia de trabalho chegou ao fim. Márcio retorna para casa. Antes passa numa floricultura e compra lindo buquê de rosas. Não se esquece de bombons. Doce preferido dos filhos. Ao passar diante de uma igreja católica, para o carro por alguns minutos e reza três preces de Pai Nosso, clamando para que o Brasil nunca caia nas mãos de um governo comunista. Em casa, toma banho, veste pijama e vai brincar de autorama. Antes de dormir com a esposa, não se esquece de colocar touca e deixar o ursinho ao lado da amada, a quem jurou amor eterno naquele inverno de 1952, quando se casaram na igreja do Largo Coração de Jesus, no Bom Retiro.


*Márcio é o nome fictício de um dos delegados mais cruéis na Ditadura Militar, que prestava plantão no DOI/Codi, e fazia questão de usar corrente com crucifixo durante as torturas. O casal de professores é fictício, mas representa todos acusados de terrorismo presos entre 1969 e 1976, alguns mortos após as intensas sessões de maus tratos. Porém os métodos usados foram retirados dos documentos elaborados pela Comissão Nacional da Verdade que concluiu seu trabalho nesta semana (12/2014).

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