Ônibus da Guarda Civil Metropolitana, de São Paulo, parado na Cracolândia, onde drogas transformam vidas em farrapos |
Luís
Alberto Alves
Durante alguns dias o editor deste blog, Luís Alberto Alves, sentiu na pele o
desespero de procurar um dependente químico pelas ruas de São Paulo. Com nomes
fictícios para preservar a família do jovem desaparecido de casa há 30 dias, a
saga começa pela Baixada do Glicério, região central da cidade, a poucos metros
da estação Dom Pedro do Metrô. Antes eles fizeram varreduras em hospitais e
necrotérios. Nada encontraram.
Ainda fazendo bastante calor, acompanhei os
familiares da vítima desta terrível droga chamada crack. O carro anda em marcha
lenta para facilitar a visualização de adolescentes, jovens e adultos, maioria
homens, reunidos num terreno baldio embaixo de dois viadutos que terminam na
Avenida Rangel Pestana.
Iludidos pela rápida sensação de alívio
proporcionada pelas pedras deste entorpecente, eles não se incomodam mais com a
sujeira do local onde dormem, urinam e defecam. O forte odor arde as narinas.
Semelhantes a zumbis, o olhar perdido fixam em mim e nos parentes da pessoa
desaparecida.
Após alguns minutos saímos e entramos nas ruas
da Baixada do Glicério, bairro dominado pelo crime organizado. Perto da igreja
católica e do quartel do Corpo de Bombeiros daquele bairro, se misturam
haitianos e africanos. Nas mãos de alguns deles é possível ver papelotes de
cocaína e pedras de crack.
Prazer
De vidros erguidos, passamos novamente em
marcha lenta até encontrar uma rara blitz da PM no local. De arma na mão, o
soldado nos olha assustado e entramos em outro beco. Nada encontramos. Apenas
mais miséria e farrapos humanos sentados nas calçadas interessados apenas na
próxima carreira de cocaína ou fumar a minúscula pedra na busca do prazer que
rapidamente passará.
Entramos no bairro do Cambuci e subimos a rua
que atravessa a Avenida Conselheiro Furtado. Outra cena horrível: vários homens
e algumas mulheres, imundos, inclusive com os cabelos sujos, se drogam
livremente. Devagar olhamos cada um deles, mas quem procuramos não se encontra
ali.
Após alguns minutos já estamos na Cracolândia,
no quadrado formado pela Praça Júlio Prestes, Largo Coração de Jesus e Praça
Princesa Isabel e antigo prédio do Deops, temível lugar onde muitos presos
políticos foram torturados e mortos durante o Regime Militar. Ali a miséria humana
aparece de forma assustadora. De bermudas ou sem camisa, os viciados não têm
nenhuma preocupação com os policiais da Guarda Civil Metropolitana montando
guarda ao lado do ônibus da corporação.
Paramos o carro, olhamos atentamente para cada
homem ou mulher. O casal, pai do dependente químico desaparecido, averigua cada
detalhe, mas infelizmente nada de positivo acontece. Apenas decepção após
várias horas rodando por diversas ruas da capital paulista sem obter nenhum
resultado positivo.
Periferia
No dia seguinte o itinerário muda. Em vez do
Centro, deslocamos para a periferia de Santo Amaro. A busca começa no início da
tarde e termina após a meianoite. Andamos em marcha lenta por praças e ruas
estreitas daquela região. A mesma cena volta a se repetir, com inúmeros
drogados, de olhar perdido e quase sem vida, alojados nos bancos, interessados
apenas no prazer maligno do entorpecente.
O casal tenta aparentar calma, mas é visível
nos gestos e tom de voz o nervosismo e tensão. Cada pessoa sentada ou deitada
na porta de estabelecimento fechados ou mesmo abandonados pode representar o
alívio daquela busca. O cansaço chega rápido, por causa das subidas e descidas
em ruas esburacadas e algumas sem boa iluminação.
São horas olhando em diversas direções, com a
boca seca castigada pela sede e a fome torturando o estômago. Num contato feito
com Pms de uma base, a resposta de estímulo é humilhante: “distribua a foto,
porque um pai fez isto nos quatro anos de procura do seu filho”. De forma
subliminar o policial está dizendo que será difícil encontrar o desaparecido.
Mas o pior estava por vir, quando nos
deparamos com um homem, aparentando mais de 30 anos, que dizia saber onde se
encontrava a pessoa que estávamos procurando. Dopado ele falava palavras
desconexas. Nos levou a uma casa, ponto de venda de drogas. A pessoa não estava
lá.
Madrugada
Paramos, numa praça, de madrugada, e começamos
a conversar com o suspeito. Transpirando bastante, tenta nos levar para outro
ponto de droga. A proposta é recusada por ser local muito perigoso. Os nervos
dos pais da pessoa desaparecida estão à flor da pele. Nesta hora, o sono, fome,
sede e cansaço castigam o corpo. A mente não consegue mais decodificar
facilmente todas as informações.
Logo descobrimos outros locais, em bairros
próximos ao Aeroporto de Congonhas, Zona Sul paulistana, que passa a esperança
de encontrar o dependente químico tão procurado por todos nós. Mas o sono e as
dores no corpo nos vencem e retornamos cada um para sua casa.
Quando se vai atrás de alguém sumido por causa
das drogas, qualquer ligação que chega ao celular é vista como tábua de esperança.
Assim como pessoa que tenha traços parecidos ou mesmo jeito de caminhar. Por
maior que seja a dificuldade, a esperança acaba ganhando destaque. No início de
cada busca, a mesma frase aparece na boca: “hoje, com ajuda de Deus, vamos ter
bom resultado”.
Na busca pelo veneno que proporciona pouco
tempo de prazer, descobri que os dependentes químicos viram andarilhos. Saem da
Zona Norte e vão à Zona Sul ou do Oeste para Leste. Não dormem durante a noite.
Reserva este período para se entupir de entorpecentes. Não raro sofrem
overdose. Procuram cochilar no começo da manhã.
Mentira
Para conseguir dinheiro mentem bastante.
Entram nos ônibus, para pedir dinheiro. Inventam história de que a mãe ou pai
está doente e precisa daquele valor para comprar remédio. As mulheres repetem o
mesmo gesto. Tudo é válido para garantir a compra da pedra maldita. Entre os
drogados nunca falam seus nomes verdadeiros, mas utilizam apelidos.
As pontas dos dedos ficam escuras por causa
das queimaduras ao segurar o cachimbo, feito de lata de bebida onde a pedra do
crack é acesa. Os dentes, dependendo do uso prolongado, começam a apodrecer
rapidamente. Aos poucos a dignidade some. As roupas ficam sujas, os pés
escurecem com o pó do asfalto, o corpo passa a exalar mau cheiro de urina e
fezes.
O estágio final de alguém mergulhado no vício
do crack é trágico. Numa das vezes me deparei com uma jovem diante da Catedral
da Sé, maltrapilha, descalça e bem magra. Logo ouvi alguém dizer: “essa menina
era linda quando chegou aqui. Princesa. Agora virou farrapo, lixo. Ninguém nem
mais olha para ela”.
Como profissional de imprensa, onde estou há
30 anos, percebi o quanto é difícil para os pais de alguém drogado suportar a
maratona de carro ou a pé, aquele ente querido seqüestrado pelo
vício. A tortura do telefone celular não tocar trazendo a boa notícia ou mesmo
a porta da casa se abrir, com ele retornando para ficar e nunca mais sumir.
Infelizmente a droga castiga profundamente o dependente químico e seus
familiares.
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